Empresas do RS intensificam contratações de indígenas para a colheita de maçã
Dos cerca de 12 mil trabalhadores temporários contratados nesta safra, 2,7 mil são das etnias guarani-kaiowá, kadiwéu e terena
FERNANDO SOARES
rachando, cerca de 20 pessoas se posicionam em meio ao pomar. Portando uma escada, que possibilita atingir até o topo das macieiras, cada uma escolhe um ponto para fincar posição. A partir daí, colhem as maçãs das árvores. Uma por uma, colocando em um cesto preso à barriga. Enquanto fazem a tarefa, a conversa rola solta no grupo. O idioma, porém, não é o português, mas uma língua de origem indígena.
A cena tornou-se comum a cada início de ano em Vacaria, que tem 67 mil habitantes, nos Campos de Cima da Serra. Empresas do município, principal polo produtor de maçãs do Rio Grande do Sul e o segundo maior do Brasil, têm recorrido, cada vez mais, à mão de obra de índios vindos do Mato Grosso do Sul. Dos cerca de 12 mil trabalhadores temporários contratados nesta safra, 2,7 mil são indígenas das etnias guarani-kaiowá, kadiwéu e terena. De acordo com a Fundação do Trabalho do Mato Grosso do Sul (Funtrab-MS), que auxilia nas seleções, o número é recorde.
— Vem aumentando a cada ano. Estamos intermediando contratações de índios de 15 aldeias para nove empresas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina — comemora Enelvo Felini, presidente da Funtrab-MS, que atua em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) no processo.
Em meio ao avanço da mecanização das atividades no campo, a maçã ainda resiste como uma das culturas mais intensivas em uso de mão de obra. Não há máquina que consiga substituir a precisão do toque humano para retirar os frutos. Além disso, a atividade precisa ser feita em curto espaço de tempo, com o ciclo não passando de 45 dias na variedade gala, e de 30 dias na fuji. Sendo assim, o Rio Grande do Sul, em especial a região serrana, busca uma multidão de trabalhadores entre meados de janeiro e abril para dar conta de mais de 14 mil hectares de área plantada.
Os primeiros indígenas sul-mato-grossenses começaram a aparecer nos pomares gaúchos no início da década de 2010. O diretor de fruticultura da Rasip, Celso Zancan, recorda que, com o então momento de pleno emprego no Brasil, empresas tiveram de aumentar o leque de possibilidades na hora de contratar.
Se tu colocas uma turma com pessoas daqui e outra com indígenas lado a lado no pomar, a de indígenas vai colher mais e melhor. Eles aprendem muito rápido e são receptivos aos ensinamentos.
FABIANA FERNANDES
Gerente de recursos humanos da empresa Frutini
— Com o passar dos anos, fomos melhorando nosso entendimento da cultura indígena e o relacionamento com as lideranças das aldeias. Eles já sabem como funciona o trabalho, o que nos dá tranquilidade — diz Zancan.
Dos 2,2 mil temporários contratados pela Rasip em 2020, 988 são índios do Mato Grosso do Sul. O montante é superior até mesmo aos 900 funcionários fixos que tem o Grupo RAR, do qual a Rasip faz parte. Na hora de distribuí-los entre os 1,1 mil hectares de pomares, que devem gerar até 60 mil toneladas, a companhia forma grupos com pessoas das mesmas aldeias e etnias. A divisão é respeitada nos alojamentos, onde safristas são hospedados durante a colheita.
Toda turma possui uma espécie de líder que monitora a produção do grupo. Há dois anos, o guarani-kaiowá Lídio Rossati desempenha essa função. Nos pomares, corrige eventuais erros, distribui tarefas e aconselha os jovens.
— Todo mundo tem saudade de casa e da família, mas temos um contrato de 45 dias, precisamos chegar ao final e voltarmos bem para as nossas famílias — destaca.
“Tem empresa que não quer”
Apesar de crescente, a contratação de indígenas para a colheita da maçã não é unanimidade entre as empresas de Vacaria. O presidente da Associação Gaúcha de Produtores de Maçã (Agapomi), José Sozo, destaca que alguns fruticultores são resistentes à ideia.
— Tem empresa que não quer. Ainda mais agora que descobrimos o Nordeste, que tem pessoal mais disciplinado e que fica até 90 dias direto colhendo — aponta.
Episódios no passado envolvendo uso de bebidas alcoólicas nos alojamentos acabaram fazendo com que companhias repensassem a escolha. O caso mais grave foi em 2013, quando uma empresa colocou integrantes de tribos rivais no mesmo alojamento. Em uma briga, dois índios morreram carbonizados após serem trancados em um quarto incendiado por um grupo.
A intermediação da Funtrab-MS, a partir de 2015, no cadastramento dos trabalhadores indígenas não foi bem recebida por parcela das companhias. Alguns empresários avaliam que a entrada do órgão gera excesso de burocracia e preferem contratar funcionários de outros Estados.
NO RIO GRANDE DO SUL
Entenda como funciona a logística por trás da contratação de indígenas para a safra de maçã
Representantes de empresas gaúchas visitam aldeias no Mato Grosso do Sul
14/02/2020 - 21h26minAtualizada em 14/02/2020 - 21h28min
FERNANDO SOARES
A contratação para a colheita da safra de maçã nos Campos de Cima da Serra, no Rio Grande do Sul, começa meses antes de os frutos amadurecerem. No caso da mão de obra indígena vinda do Mato Grosso do Sul, que vem crescendo nos últimos anos e atingiu número recorde em 2020, representantes das empresas gaúchas mantêm contatos com as aldeias durante todo o ano para efetuar a seleção de trabalhadores.
Sempre em outubro, Nilson Bossardi, sócio-gerente da Frutini, de Vacaria, percorre quase uma dezena de aldeias para anunciar vagas. Após sete anos escolhendo trabalhadores no Mato Grosso do Sul, hoje ele é recebido com pompa. Em gratidão, indígenas oferecem refeições coletivas para recepcioná-lo.
Na Frutini, algumas turmas são enviadas ao Rio Grande do Sul ainda em novembro para o raleio dos pomares, quando se retira o excesso de frutos da planta. O auge da movimentação é a partir da metade de janeiro, quando ônibus partem rumo aos Campos de Cima da Serra. Antes do embarque, a Fundação do Trabalho do Mato Grosso do Sul (Funtrab-MS) ajuda a organizar as turmas e a separar a documentação dos safristas, que têm a carteira assinada.
Após dois dias de viagem, terenas chegam com 45 dias de contrato garantidos para a colheita da maçã gala. Alguns têm o vínculo estendido por mais 30 dias para trabalhar na variedade fuji. Em 2020, na Frutini, 534 dos 735 temporários são indígenas. Bossardi calcula que o transporte de cada grupo custa R$ 23 mil para a empresa. O investimento, segundo ele, compensa.
– É mais caro do que trazer gente de perto, mas indígenas se adaptaram muito fácil à maçã. A qualidade do trabalho fez com que eles fossem ficando – explica Bossardi.
Crítica
Na safra, funcionários da Funtrab vão à Vacaria para avaliar as condições de trabalho e hospedagem oferecidas pelas empresas. Eventuais irregularidades são encaminhadas ao Ministério Público do Trabalho (MPT). O MPT-RS ressalta que não há registro de problemas recentes.
– Por ora, não temos casos de ilicitudes na contratação de mão de obra indígena para a colheita. Talvez, devido ao trabalho preventivo realizado no Mato Grosso do Sul – avalia Gilson de Azevedo, vice-procurador chefe do MPT-RS.
No passado, pomares vacarienses foram alvo de denúncias até de trabalho análogo à escravidão. O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da região Sul, Roberto Liebgott, ressalva:
– Eles estão servindo como mão de obra barata, uma forma moderna de escravidão, em razão da falta de políticas fundiárias para os povos em suas regiões. Se submetem a essa condição porque onde vivem lhes tiraram quase tudo.
Falta de oportunidades estimula vinda ao RS
A falta de oportunidades de trabalho no Mato Grosso do Sul é um dos principais fatores que estimulam a vinda de indígenas ao Rio Grande do Sul. Desempregado há cinco meses, Cleberson Lescano, de etnia kadiwéu, não pensou duas vezes em aceitar o convite para integrar um dos grupos que saíram do município de Miranda com destino a Vacaria. Ele chegou à cidade no início de fevereiro e espera ficar até meados de abril, quando se encerra a colheita da variedade fuji.
– Está muito difícil, não aparece nada de trabalho lá. Conseguir o emprego aqui me deu um alívio – diz Lescano, estreante na colheita da maçã.
A maioria dos indígenas presentes nos pomares gaúchos nesta safra já veio em anos anteriores ao Estado. Conforme ganham experiência, muitos acabam progredindo nas funções dentro dos pomares.
O guarani-kaiowá Adair Gonçalves vem aos Campos de Cima da Serra há sete anos. A bagagem adquirida em meio às macieiras o levou ao posto de segurança no alojamento, o que lhe garante emprego formal com carteira assinada alguns meses além do período da colheita.
— Organizo as turmas que vão chegando e cuido para o pessoal não fazer bagunça – resume Gonçalves, que fica a cargo de uma fazenda com mais de 700 pessoas, sendo 70% índios das etnias guarani-kaiowá, kadiwéu e terena.
Eles costumam voltar para suas casas ao final da colheita, em abril, mas já há casos de quem decidiu fixar raízes no Rio Grande do Sul. Eliel Pereira, de etnia terena, veio em 2019 pela primeira vez para atuar como safrista e se apaixonou pelo trabalho com a fruta. Um dia tomou coragem para conversar com o supervisor da empresa, pediu emprego fixo e teve a solicitação atendida.
– Nunca tinha visto um pé de maçã na minha vida. Fui conhecendo como funcionava a colheita e tive a oportunidade de ficar. No futuro, quero trazer minha família – projeta Pereira, que tem uma filha de cinco anos.
Durante a colheita, ele monitora as turmas de safristas, compostas por seus antigos colegas de aldeia. Ao fim do período, ajuda a cuidar dos pomares, fazendo a poda e outras atividades relacionadas à manutenção das árvores.
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