Agricultura pós-coronavírus: ‘não podemos voltar ao normal, porque o passado não era bom’
Luís Eduardo Gomes
O Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior de Porto Alegre (ADUFRGS-Sindical) promoveu na manhã desta quarta-feira (22) uma aula pública pela internet para debater os desafios alimentares em tempos de coronavírus. Mediada pelo professor Jairo Bolter, da direção da entidade, a aula contou com palestras dos professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Sergio Schneider, dos Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e Desenvolvimento Rural (PGDR), e Luciana Dias de Oliveira, do Departamento de Nutrição e coordenadora do Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição do Escolar.
Sérgio começou sua aula dizendo que, no contexto de pandemia, além da preocupação com a saúde, com o isolamento social, as pessoas precisam, antes de mais nada, satisfazerem suas necessidades básicas de alimentação e que uma alimentação saudável é condição essencial para fortalecer a imunidade. Nesse sentido, a temática da alimentação é crucial e, segundo ele, deve se tornar ainda mais com o avanço da epidemia. “Imagino que, a partir de meados de maio, de junho, se a situação perdurar, vamos te problemas relacionados ao abastecimento. Uma grande preocupação é como as pessoas vão comprar e preparar os alimentos?”, disse.
O professor pontuou que a pandemia de coronavírus talvez seja um dos momentos de maior incerteza da história, e cujas consequências ainda são imprevisíveis, também para a área da agricultura. No entanto, ela poderá até ser uma oportunidade para repensar o modelo de produção vigente. “O cenário pós-covid-19 não poderia ser simplesmente uma volta ao passado. O jeito que estava já não era bom. Por quê? Porque a agricultura industrial, a forma de produzir em larga escala, é forte concorrente para provocar uma das crises que se avizinha, que é a das mudanças climáticas”, disse.
O professor pontuou que o modelo de agricultura atual é responsável por entre 20% e 35% dos gases de efeito estufa, produz o envenenamento do solo, da biodiversidade, dos agricultores e dos consumidores, resulta em alimentos de baixa qualidade, sem os nutrientes necessários para uma boa alimentação, e é marcado por altas taxas de desperdício.
Além disso, afirmou que já não é mais necessário, como era no passado, pensar em aumentar a produção, pois já se produz alimento suficiente para toda a população mundial, sendo a fome e a subnutrição causadas pela falta de acesso. Segundo ele, a preocupação com a produção fazia sentido, por exemplo, em um período em que o Brasil promoveu a transferência de 30 milhões de habitantes do campo para a cidade em 20 anos. “Não é questão de produzir mais, derrubar mais árvores, não é necessário fazer mais nada. A gente precisa mudar o modelo que já não está funcionando bem”, disse.
Ele avalia que esse modelo atual, de fazendas voltadas para grandes monoculturas, tem produzido dietas alimentares altamente calóricas. “Agricultura industrial, comida industrializada, gera impacto na saúde. A epidemia da obesidade está grassando mundo à fora, é generalizada. Eu não tenho nada pessoalmente contra o eucalipto e a soja, a questão é a monocultura disso. Isso gera um jeito de produzir, com altos impactos, que gera um produto que é muito carente nas suas qualidades nutricionais”, disse.
Sérgio também afirmou que esse tipo de produção ainda tem um grande impacto social, porque a pobreza e a vulnerabilidade social no campo aumentaram nos últimos 20 anos, mesmo com o forte crescimento da agricultura industrial no País. “Esse modelo não é bom, não é bom para o meio ambiente, não é bom para os consumidores”.
O professor disse ainda que modelo está se tornando cada vez mais obsoleto em relação às grandes questões da nossa época: mudanças climáticas, urbanização e transição energética. “Se continuarmos emitindo gases de efeito estufa, as mudanças climáticas vão acelerar cada vez mais e o impacto nas populações urbanas serão maiores. Uma coisa está ligada a outra”, afirma.
Nesse sentido, ele diz que é preciso reposicionar a agricultura no século 21 em relação a três questões: mudanças climáticas, urbanização e saúde/nutrição. Sérgio afirma que o binômio saúde e nutrição é o principal vetor de transformação e que já perceptível uma mudança lenta e gradual em direção ao consumo de produtos orgânicos e dietas vegetarianas ou veganas. “A grande mudança no século 21 virá pelo consumo. Os consumidores estão mudando suas preferências”, afirma. “Uma coisa é certa, não vamos ter mais um único modelo recomendado”.
Para finalizar, Sérgio afirmou que é preciso mudar as métricas de avaliação da agricultura, que hoje valorizam produção e exportação, para o impacto e a contribuição na saúde pública, o que levaria ao direcionamento para uma agricultura sensível à nutrição, que leve em conta fatores como acesso, quantidade, qualidade e respeito à cultura alimentar. “O que precisamos é gerar sistemas alimentares sustentáveis”.
O que é alimentação saudável?
A professora Luciana Dias de Oliveira focou a sua apresentação em torno da pergunta: ‘o que é alimentação saudável?’ Segundo ela, essa é uma pergunta em que cada pessoa poderia ter uma resposta própria. Contudo, formular uma resposta começaria por, primeiro, entender o contexto alimentar atual, que é de desigualdades sociais, de uma agricultura prioritariamente voltada para o agronegócio, de abundância de alimentos ultra processados, ao mesmo tempo em que há uma busca constante pelo corpo ideal, por alimentação ‘fitness’, de dietas restritivas, e também há uma revolução em andamento na área da agricultura familiar, com aumento do acesso a produtos produzidos de forma orgânica, com ampliação de cadeias logísticas.
Além disso, Luciana afirma que conceitos fundamentados nas Ciências da Nutrição também estão sendo modificados, com a migração de uma ideia de que a alimentação saudável é aquela que engloba um determinado número de nutrientes para outra menos prescritiva, em que a preocupação é menos de recomendar porções e mais voltada para a combinação de alimentos e formas de preparo. “As pessoas não consomem nutrientes, fazem refeições”, disse.
Nesse sentido, um novo conceito de alimentação saudável deveria levar em conta cinco dimensões: o direito humano à alimentação de qualidade; a dimensão biológica (aspectos nutricionais e sanitários); sociocultural (relação dos indivíduos com a comida); questões econômicas (relações de trabalho estabelecidas no âmbito do sistema alimentar); ambiental (formas de produção, comercialização e consumo dos alimentos). Ela acrescenta ainda que as pessoas precisam ter autonomia para fazer escolhas que façam sentido para os seus ciclos de vida.
Retomando a ideia de alimentação durante a pandemia, a professora pontua que as incertezas trazidas pelo vírus trazem à tona questões como acesso a alimentos, a qualidade e a forma de preparo. Ela destaca que o problema do acesso é ainda mais agravado porque o Brasil já vivia um momento de desarticulação das políticas de promoção da segurança alimentar, com restrição ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e à extinção da Abordagem da Insegurança Alimentar e Nutricional (InSan).
Por outro lado, pontua que também pode ser um momento para a valorização da agricultura familiar, que traz como vantagens a proximidade geográfica, que facilita a distribuição e o acesso, a produção de alimentos diversificados e frescos, o fato de abranger cerca de 80% dos trabalhadores rurais e de utilizar práticas produtivas mais sustentáveis.
Créditos Sul21, publicado originalmente em - https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/coronavirus/2020/04/agricultura-pos-coronavirus-nao-podemos-voltar-ao-normal-porque-o-passado-nao-era-bom/
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